Por Pierpaolo Cruz Bottini, autor de grandes obras publicadas pela Revista dos Tribunais
A defesa da segurança ou a preservação da intimidade? Qual o equilíbrio ideal entre a garantia dos espaços privados do indivíduo e os poderes do Estado para investigar atos ilícitos? Nos últimos dias, a polêmica assolou os jornais, diante da notícia de que o governo americano vasculhou dados telefônicos de todos os clientes da operadora Verizon, e se utilizou de um programa chamado Prism para coleta de informações na internet, incluindo mensagens eletrônicas de usuários de grandes provedores.
Sob o prisma da legislação americana, desfiou-se acirrada discussão acerca da legitimidade de tais atos. Há quem defenda a iniciativa, indicando a existência de autorização judicial e aprovação do Congresso. Outros a criticam, uma vez que o sigilo das investigações impediria uma adequada fiscalização das atividades para evitar excessos.
No Brasil, a operação seria fadada ao fracasso jurídico. A proteção constitucional da intimidade garante ao espaço íntimo do cidadão brasileiro um status mais qualificado do que aquele concedido ao nacional americano. Ao menos esse é o entendimento dos nossos tribunais.
Ao contrário do que ocorre no hemisfério norte, o Judiciário brasileiro tem tratado os poderes estatais de investigação com mais cautela. Entendeu-se que os incisos X e XII do artigo 5º da Constituição consagram a ideia de que a preservação de espaços de individualidade nos quais o Poder Público não deve intervir é indispensável à dignidade humana. Ou seja, segundo nosso texto maior, não existe exercício pleno da liberdade em ambientes observados permanentemente pelo Estado.
Isso não significa imunidade absoluta da intimidade. O uso deste espaço privado para a prática de crimes autoriza a suspensão excepcional da privacidade, justificando a violação eventual de dados, interceptações telefônicas e ambientais. Mas a exceção deve existir enquanto tal. Isolada, excêntrica, e cuidadosamente justificada por indícios concretos de que aquele cidadão cujos direitos foram afetados abusou do espaço íntimo, tornando-o meio ou fim de ato criminoso.
Por isso, uma decisão judicial como a americana, que autorizou a quebra de sigilo de dados de todos os clientes da operadora Verizon, indistintamente, não seria cabível em nosso país. A violação de sigilo em massa é estranha à proteção constitucional da intimidade. Direitos individuais somente são suspensos com justificativas individuais, concretas. A supressão por atacado da intimidade não é afeita ao Estado de Direito.
Assim decidiu o STJ, em operação de grande repercussão, declarando ilegal a violação do sigilo de dados telefônicos de um grupo de pessoas, sem motivação individualizada. Como apontou o ministro relator Celso Limongi, segundo reportagem da ConJur de 5 de abril de 2011:
“A abrangência do deferimento concedendo, indiscriminadamente, senhas foi uma autorização geral, em branco, servindo para a quebra de sigilo de qualquer número de telefone, dando ensejo a verdadeira devassa na vida dos suspeitos e de qualquer pessoa”, afirmou o desembargador. Para Limongi, “se a Polícia desrespeita a norma e o Ministério Público passa por cima da irregularidade, não pode, nem deve, o Judiciário conceder beneplácitos a violações da lei”[1].
Outras decisões de Tribunais outorgam à quebra de sigilo sua devida natureza: a de exceção[2]. Diante disso, pode-se afirmar que em matéria de sigilos constitucionais, o Judiciário nacional tem agido com a firmeza, garantindo um espaço de preservação de direitos individuais, impedindo a violação generalizada da esfera de intimidade dos cidadãos. Talvez por isso inexistam (aparentemente) Prisms ou Guatánamos no Brasil, o que revela a importância da postura da magistratura na defesa de diretrizes constitucionais, mesmo diante da crescente demanda por mais segurança e menos garantias. Demanda que, em regra, não anda de braços com a democracia.
rel. min. Joaquim Barbosa, STF, MS 22801, rel. min. Menezes Direito.
Revista Consultor Jurídico, 11 de junho de 2013
Fonte: www.conjur.com.br
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